José e PilarA surpresa de
José e Pilar é principalmente a sua naturalidade. Quando vemos biografias ou retratos sociais
post mortem de grandes personalidades habituamo-nos a que tudo esteja arranjado de forma a enaltecê-los como personagens intocáveis, sem erros e de certa forma, sublimes. A magia de Miguel Gonçalves Mendes é precisamente apresentar José Saramago e Pilar del Rio como duas pessoas, humanas como tantas outras. José, melancólico e irreverente, Pilar, uma tempestade andaluza. A película organiza-se em capítulos como um livro e acompanha os últimos anos do casal, focando-se no período em que o Nobel escreveu
A Viagem do Elefante e foi atacado pela doença. Vemos o dia a dia e o trabalho incansável de Pilar, mas também vemos a figura carismática de Saramago e a sua vontade e amor pela vida sem temer a morte, sempre com ela a seu lado. Numa viagem que nos leva por Lanzarote, Madrid, Lisboa, México, Brasil ou Finlândia lembramo-nos do quão atribulada pode ser uma vida de eventos e promoções e também o pouco que a idade importa quando o espírito é o de um jovem criativo. Numa analogia lamechosamente correcta podemos dizer que a esposa era "o pilar" na vida do escritor, a mulher que pegou nas rédeas e o ajudou nos melhores e mais difíceis momentos da sua carreira. Vemos também a negligência por Portugal enquanto pátria à sua obra e o quão deprimente é ver um talento bem mais valorizado no exterior. Mas é bom ver que quem o amava, amava de verdade.
Pequenos clips idealizados por Mendes mostram-nos paisagens vulcânicas de Lanzarote, declarações de amor e metáforas visuais de tempo e espaço. Tudo isto é enriquecido por uma excelente e fresca banda sonora, em que artistas como Camané, Noiserv ou Adriana Calcanhoto provam que a lusofonia é de facto o bem mais rico da herança portuguesa.
O filme cumpre as promessas apresentadas no trailer promocional, sendo delicado e belo, muito bem humorado e com muitos momentos catárticos. Entre viagens, discursos, discussões e desabafos, carinhos e sarcasmos, surge-nos uma citação de importância maior semelhante a esta: "
Se gostei da minha vida? Gostei tanto que a viveria de novo, mas toda ela". E a verdade é esta.
"Pilar, encontramo-nos noutro sítio"
A Rede SocialA expectativa sobre a nova película de David Fincher era tanta que qualquer medo de desilusão era normal. Não há razão para receios, pelo menos para quem espera um filme de violência psicológica passado na maior parte em volta de uma mesa. Não se esperem grandes acrobacias nem histórias de casos reais na internet, o objectivo do filme é explicar a origem e contexto da ideia do Facebook, quais os lucros que teve desde então e todo o processo judicial de direitos de autor e privacidade infrigidos por Mark Zuckerberg, o seu mentor. Qualquer espectador nutre desde a cena inicial do filme,em que o Zuckerberg debate com a namorada uma data de assuntos à velocidade da luz, uma antipatia e admiração simultânea por ele. À medida que avança, estes sentimentos vão-se imiscuindo num só, galopando pelo próprio evoluir do egoismo da personagem. Fincher consegue também fazer-nos penetrar no mundo dos estudantes de elite de Harvard, situação sobreposta mais tarde pelo mundo dos negócios de Nova Iorque ou L.A., advertindo-nos que por trás de coisas aparentemente simples como o Facebook, estão impensáveis transcções milionárias que movem o mundo e de certa forma controlam os impávidos utilizadores, dos quais se alimentam e aproveitam. O final do filme, como todos devem calcular, é uma "
chapada de luva branca" na cara de todos os utilizadores do Facebook e do quão ridícula se pode ter tornado a dependência tecnológica no século XXI.
Mistérios de LisboaNão sou fã de Camilo Castelo Branco. Tanto romantismo deixa-me de certo modo aborrecido e deprimido, como se de apenas a paixão o ser humano dependesse, não existindo mais nenhum motivo pelo qual valha a pena viver. O chileno Raul Ruiz salva esta obra densa e gigantesca num longo filme e série, que tudo tem de português. Na verdade, a fita chega a ser tão perfeita que nos questionamos por que motivo não havia já sido feito algo assim em Portugal.
Mistérios de Lisboa adopta como fio condutor principal a vida de João/Pedro da Silva (em adulto interpretado por Afonso Pimentel), abandonado em criança para um orfanato como fruto de intrigas familiares e amores proibidos. Quando descobre quem é a sua mãe, a condessa Ângela de Lima (Maria João Bastos), pede ao Padre Dinis (Adriano Luz) para conhecê-la e é a partir deste momento que o argumento entra em sucessiva renovação, apresentando-nos diversas personagens e a sua vida, assim como os seus segredos e intrigas complementares. O filme toma então a estrutura de um puzzle, que aparenta ficar completo à medida que os anos passam, embora com peças fulcrais sempre ausentes que apelam à intuição do espectador e que só perto do fim serão adicionadas. À boa moda de um folhetim, os pais já não pais, muitos não são quem dizem ser, há relações familiares descobertas até então desconhecidas, emigração, luta pelo poder, traição, etc. Mas, até agora tudo parece estar na linha descritiva de qualquer outro filme de época, o que tem então de diferente? Ruiz conduz a acção pela introdução/conclusão de capítulos com um pequeno teatro de bonecos de cartão (pertencente a Pedro da Silva, que o leva consigo para onde quer que vá), representando cuidadosamente momentos-chave no pequeno brinquedo. Há ainda técnicas inovadoras de jogos de sombras e luz, reflexos de espalho e distorções de imagem, há até uma cena em que o tecto do teatro é filmado através de uma placa de acrílico (simulação de mesa de vidro, ver imagem acima) para a qual é deitado um bilhete rasgado. Para adicionar ao rico elenco português com figuras como Albano Jerónimo, Maria João Bastos, Adriano Luz, Afonso Pimentel, Catarina Wallenstein ou Ricardo Pereira há duas estrelas francesas: Léa Seydoux e Melvil Poupaud. O francês é então uma língua que povoa em grande parte esta obra, intercalando-se com o português novecentista.
Como um retrato da sociedade do século XIX,
Mistérios de Lisboa é sem dúvida uma das melhores e mais completas longas-metrages do ano. O
Le Monde,
The New York Times e muitos outros concordam. As quatro horas e meia valem a pena cada minuto.