quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Entrevista ao Alfaiate - (1/3)


O Estado d'Arte foi conversar com José Cabral, mentor do famoso blog português O Alfaiate Lisboeta. Esta é a primeira parte da entrevista, que resulta como uma clarificação do seu trabalho na blogosfera. Nos próximos dias seguem-se os restantes dois fragmentos.

A sua profissão não está ligada àquilo que escreve. Já me apercebi, por alguns comentários no blog, assim como em entrevistas que lhe foram feitas, que as pessoas ficam surpreendidas por isso. Acha que hoje em dia se desvalorizam as capacidades do Homem como alguém que consegue exercer actividades de enriquecimento pessoal muito distintas?
Há uma tendência para se catalogar as pessoas por aquilo que elas fazem. Eu já fui comissário de bordo e lembro-me que havia uma perspectiva muito diferente daquela que eu percebo agora quando digo a alguém que sou bancário. Acho normal, tem a ver com construções sociais. O blog tem um registo pessoal e acaba por ser o meu projecto criativo. Se tivesse uma profissão mais criativa talvez não tivesse tanta necessidade de ter o meu próprio projecto. Por outro lado se não tivesse que usar fato e gravata todos os dias, talvez não me tivesse lembrado de usar “Alfaiate” para nome do blog.

Acha que isso acontece com a maior parte das pessoas? Ou a existência personalidades multifacetadas é algo escasso na população, padronizando-se em determinada actividade?
Creio que é pessoal. Tem a ver com o facto de as pessoas se sentirem realizadas não é? Há pessoas que não se sentem realizadas numa actividade apenas.

O que vê, por exemplo, nos seus colegas de trabalho?
Se calhar eu e os meus colegas de trabalho temos algumas diferenças. Já nos meus amigos, noto que os interesses e a profissão podem ser bastante diferentes. Quantos engenheiros mecânicos não são por exemplo apreciadores de arte ou engenheiros informáticos que escrevem poemas… Não sei se as coisas antes seriam assim, mas acho que cada vez mais as pessoas têm possibilidade de satisfazer o seu desejo de ter interesses diversificados. A vida profissional é só uma das facetas que nós temos. É por isso que me faz confusão dizer Zé, o bancário ou João, o empresário, Maria, a médica. Não faz muito sentido, é o Zé, a Maria e o João, a profissão é apenas mais um atributo da pessoa.

Alguma inspiração para a criação d’ O Alfaiate Lisboeta, como o José já referiu, veio do blog Sartorialist. Mas a verdade é que têm diferenças. Acabou por criar um estilo próprio de escrita e fotografia que já cativou o público…
A inspiração veio principalmente do Sartorialist, e até podia ter vindo daquele estilo de blogs em geral, mas conheci logo aquele. É muito especial e bonito, acho que marca mesmo a diferença e é engraçado ver a trajectória de um tipo que tirava fotos banais e que agora tira fotografias fantásticas. Apesar de ter sido inspirado no Sartorialist, acho que O Alfaiate Lisboeta tem algo diferente, não se resume apenas a moda. Acaba por ser um blog de crónicas. Por uma razão muito simples, eu não percebo nada de moda. A experiência que eu tenho na moda é muito empírica, muito simples, é aquilo que vejo…a minha sensibilidade pessoal. Não trabalhei por exemplo 15 anos em moda como o Scott Schuman trabalhou. Mas apesar disso, sempre fui atento e sensível ao que me rodeava. É uma perspectiva muito diferente de alguém que não está no mundo da moda e escreve sobre pessoas, é um blog com um registo pessoal, até mesmo até no sentido em que explora a pessoa para além do que ela traz vestido. A moda muitas vezes acaba por ser um pretexto para falar sobre muitas outras coisas, em que posso reportar momentos passados da minha vida, de alguém que me faz lembrar um amigo ou uma ex-namorada. Muitas vezes o momento em que fotografo a pessoa dá origem à escrita do post escrito com essa fotografia. Penso que consigo transmitir o que a foto me fez sentir a quem passa pelo blog. Naqueles momentos, aquelas pessoas são a minha inspiração. Às vezes pode-me dar para escrever ou não, o que não quer dizer que aqueles minutos que estive com a pessoa tenham sido menos inspiradores. Parte muito do contacto, o critério para fotografar alguém é principalmente a forma como a pessoa está vestida. A partir daí pode ou não haver a ponte para o texto.

Várias vezes se internacionalizou. Que diferenças para além da diversidade estilística encontra nos ditos modelos em comparação com Lisboa? Por exemplo, na abordagem.
É um pouco diferente. Lisboa é uma cidade pequena dentro daquilo que é uma metrópole. As pessoas conhecem-se muito, têm sempre um amigo que tem um amigo que conhece alguém. Como se conhecem muito, as pessoas têm mais receio em aparecer num blog como este, questionando-se provavelmente “o que acharão os outros se eu aparecer lá?”. Este é um obstáculo que eu não teria por exemplo em Londres, em Nova Iorque ou em Paris. É difícil subir a rua Garrett e não ver ninguém conhecido, o que já não aconteceria por exemplo nos Champs-Elysées. Esta familiaridade tem um efeito positivo. Há uma familiaridade positiva, no sentido em que as pessoas têm uma ideia simpática do blog. É mais fácil quando conhecem o blog, porque sabem que vão ser bem tratadas e retratadas. Tiro três ou quatro fotografias e mostro à pessoa para ela escolher e assim sente-se à vontade, sendo o seu feedback o mais importante. Numa outra cidade é diferente, pois o fotógrafo é estrangeiro e as pessoas não se preocupam tanto, porque nem sabem onde vão parar as fotos e a probabilidade de as pessoas suas conhecidas as verem é menor. Quanto à forma de vestir, há cidades que inspiram mais que Lisboa, não é que Lisboa não inspire, simplesmente nas grandes metrópoles há tanta diversidade que nem há espaço para notar a diferença. Contudo, talvez nesse caso o blog não vivesse tanto deste seu lado humano. Se tivesse mais gente podia nunca ter escrito alguns textos que escrevi, lembrar-me de dizer ao meu pai para tirarmos uma fotografia com os pólos Lacoste, escrever sobre a minha irmã ou tirar fotografias a casais, sem estar em causa apenas a moda.

2 comentários:

daniela disse...

Estou a adorar, aguardo ansiosamente pelas outras partes :D
Parabéns, João, espero que esteja seja a primeira de muitas entrevistas :)

Catarina Rodrigues disse...

Foi muito boa a ideia de conhecer melhor "O Alfaiate Lisboeta".